domingo, 19 de agosto de 2012

Súplica

   Anoiteceu mais uma vez. Dona Francisca estava ali na porta de casa debulhando o feijão de cabeça baixa quando percebeu a escuridão. Lá se ia mais um dia, todos pareciam os mesmos, sem gosto ou novidade, morrendo a cada pôr do sol. Se levantou, bateu a saia cheia de palha e guardou a bacia. Em seu passo lento fechou todas as portas e janelas da casa, foi até o quarto e pegou um balde com água que estava no pé da cômoda. Molhou um pano e começou a esfregar o corpo de Antônio, seu filho de 32 anos que estava deitado na cama. Seu primogênito nunca falara ou andara. Água na cabeça, era o que os médicos tinham dito. Castigo, era o que calava no coração da velha.

   Enxugou o inválido e o deitou. Preparou a janta e a deu na boca com todo o carinho. Penteou o cabelo e colocou uma roupa limpa, bonita. Parecida com aquelas que se vai pra missa no domingo. A mesma ação que se repetia durante três décadas.

  Antônio até sorriu. Parecia gostar da vestimenta e da sensação de estar limpo. A mãe ligou o velho rádio de pilhas, Café Filho renunciou a presidência para cuidar do seu problema cardíaco, disse o locutor antes de começar uma música do Vicente Celestino. Aproveitou que estava em pé e abriu a janela do quarto antes de deitar ao lado do filho. Passou a mão em sua cabeça, deu um beijo e ficou olhando com ele o céu iluminado de estrelas. De longe podiam ver clarões e estrelas pipocando no ar. Era festa da padroeira, todos tinham ido pra igreja naquela noite.

    Francisca se demorou mais um pouco ali sentada ao lado do filho, olhou pra ele e o abraçou. Pegou um travesseiro grande da cama de casal onde dormiam os dois e o apertou contra o rosto do filho. Antônio se debateu, grunhiu o que sua garganta deixava, bateu as pernas e os braços. Segurou fragilmente os braços da velha  tentando se sair, sem sucesso, a arranhou como pôde. Depois de alguns minutos, os membros desfaleceram e o silêncio voltou à casa.

   Francisca retirou levemente o travesseiro e viu um rosto de dor. Fechou os olhos do filho com os dedos, se levantou e foi tomar banho fora da casa.

   Vestiu o vestido mais bonito que tinha, jantou na mesa da cozinha e quando terminou, fechou todas as janelas e apagou todas as lamparinas acesas. Voltou para o quarto e deitou na cama. Abraçou o corpo do filho e ficou olhando as estelas através da janela aberta. Recordou cada momento em que pensou em fazer aquilo. As incertezas e as dúvidas de um velho coração machucado.

  Lembrou do primo com quem tivera Antônio, seu único filho, e do amor perdido que tinha por ele. Recordou do rosto de cada pessoa que passara por sua vida, dos que a ajudaram e os que viraram o rosto. Lembrou dos pais e da sua infância subindo em pés de siriguela, correndo e andando de cavalo. Dos amores de moça pelo cunhado e por fim, o caso com o primo. Recordou os dias em que esteve prenha e a maldição do pai. Do dia que saiu de casa e de quando percebeu que seu amor a deixava só. Pensou no parto difícil que teve e na deformação do recém nascido como castigo por fornicar com um parente. Na Dona Maria, ex-freira, que lhe deu abrigo e cuidou dela e do filho até o fim da sua vida, há cerca de 12 anos atrás. Reviveu cada dia de solidão naquela casa vazia, sem ninguém para conversar.

  E então Francisca parou de recordar. Afagou o filho e se perguntou quanto tempo ainda demoraria até a mistura fazer efeito. Dava certo com ratos e poderia, suplicava à Deus, lhe dar o mesmo fim.

Pela janela aberta a fria madrugada amortalhou-me a dor num manto da garoa.
Esperança, morreste muito cedo.
Saudade! Cedo demais chegaste...

 Cantava Orlando Silva no rádio quando Francisca foi abraçada pela escuridão.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O vôo de Ícaro - Parte 4: 32 dentes*

            Marejou os olhos quando leu a primeira frase. Seu pai nunca lhe falara aquilo, nunca conversara muito com ele. Todas as conversas que tivera na infância, aquelas em que você aprende coisas simples da vida com um adulto, sempre as tivera com seu tio. Fora ele quem ensinara a andar de bicicleta, empinar raia, soltar pião e jogar bila e que de alguma forma fez sua infância feliz. Tinha grande apreço mesmo não o vendo à muito tempo. Devia-lhe grande parte de sua formação e caráter. E agora seu pai vinha com essa de que o amava?

            Não teve nem tempo de respirar ou esboçar qualquer reação quando a carta foi arrancada da sua mão e ouviu aquela voz irritantemente familiar:

              _Ei otário, tá de bobeira lendo cartinha de amor?

            Era Bernardo, um garoto encrenqueiro da escola São José. Mesmo já não estudando lá, Ícaro ainda era alvo de brincadeiras do garoto quando o via pela cidade. O cara mexia com todo mundo e arranjava confusão em todo canto que ia. Ouviu dizer que ele era assim, "revoltado" porque a mãe tinha enloquecido e fora mandada praquele hospício em Fortaleza.

              _Dá aqui! Não é da tua conta!

            Pegou a carta da mão do encrenqueiro e a guardou rápido no bolso. Deu meia volta e já ia saindo quando este lhe falou:

             _Não vai consolar tua namoradinha? Ele tá lá chorando feito menininha. Parece que a vadia da mãe dele foi pega com um namorado e o corno do marido resolveu ajustar as contas.

            Bernardo falava de André, seu melhor amigo. Como assim sua mãe estava com outro homem? Ela parecia tão feliz com o Sr. Átila Morais, até grávida estava. Podia ser mentira do briguento. Não deu importância, queria sair mesmo dali, saiu correndo rumo à casa do amigo que ficava perto daquela igreja nova, ali na Praça do Rosário.

            Já era noite quando chegou lá esbaforido. Ícaro viu que era verdade, havia muita gente na rua. Carros de policiais, ambulância e um carro do IML em frente à casa dos Morais. Olhou entre a multidão pra ver se encontrava seu amigo, mas foi em vão. Quando ia perguntar a um senhor o que havia acontecido, viu uns homens de branco segurando um saco preto com um corpo dentro saindo da casa em direção ao fundo do carro do IML. Pouco tempo depois vieram mais quatro homens com mais um cadáver. Fecharam as portas do carro e deram partida rumo à Fortaleza.
          Avistou o carro de reportagem daquele programa policial que passava na hora do almoço, o Aqui e Agora. Ignorou a balbúrdia que os garotos e os adultos faziam ao redor do câmera. Tanta gente! Parecia que a cidade tava toda ali. Se aproximou do portão da casa do amigo e chamou Hélia, a doméstica que sempre trabalhara na casa dos Morais. A mulher estava em choque, parecia mais velha e acabada que nos outros dias. Quando o viu, correu ao seu encontro e disse:

             _Menino, vai atrás do André. Ele chegou em casa e viu tudo. Pensei que ele tivesse contigo, vocês só andam junto. Procura por ele, que todo mundo tá preocupado. Saiu correndo feito doido e ninguém sabe donde que ele tá. Gritou que ia matar o homem que fez isso e falou um monte de baboseira. O menino endoidou! Vai atrás dele antes que faça besteira.

            Será que André fora pra sua casa lhe procurar? Era possível, ele precisaria de sua ajuda para encontrar o homem que deitara com sua mãe. 

           Fazia algum tempo desde que Ícaro recebera a carta do pai e fora pra praça. André, agora mais do que nunca precisaria da sua ajuda. Já nem se lembra mais quando o conheceu, só lembra de sentarem perto um do outro e começarem a falar de quadrinhos e outras coisas. Percebeu que tinham muita coisa em comum e começaram a andar juntos. Mesmo depois da crise e de mudar de colégio, André nunca deixou de falar ou sair com o amigo. Ao contrário de outros colegas de escola, ele sempre fora o mesmo e nunca se importara com sua condição financeira.

            Ele também esteve presente no velório de seu pai. Foi até um conforto, um alívio vê-lo em meio à tantos rostos desconhecidos naquele dia. Agora era a vez de Ícaro fazer sua parte pelo amigo. O ajudaria a encontrar aquele infeliz e se pudesse machucá-lo, o faria. Antes de chegar ao fim da rua, parou próximo ao depósito do Cordeiro e ouviu a conversa de dois homens, falavam algo sobre o ocorrido na casa dos Morais:

          _Brutal rapaz, muito louco. O cara devia tá muito fulo da vida. Um homem tão quieto e direito né não? Chegou em casa mais cedo, pediu pra sair antes do horário no trabalho porque era aniversário da mulher. Chega em casa, vê ela atracada com outro na cama.

            _E quem era o negão? Perguntou o segundo.

         _ Só Deus sabe. O que a polícia diz é que o Morais pegou um facão e que possivelmente lascou no braço do home. Porque tem um rastro de sangue da cama, passando pela janela e indo portão afora. O cara fugiu sangrando. Ele tá sendo procurado.

          _Já a mulher não teve a mesma sorte. A empregada disse que quando entrou no quarto, viu a patroa aberta. O marido endoidou e abriu a vagina dela com o facão e retirou o feto.

          _Deus me livre! O que é isso? Valei-me São Sebastião!

         _E não termina aí. Encontraram o feto pendurado nos espetos do pega-ladrão no muro da casa. O Morais tava no escritório com os miolos no teto. Atirou com uma velha 48 que tinha. Deixou um bilhete dizendo que matara a mulher e a criança que ela tinha na barriga. Escreveu que sabia que o filho não era dele.

            Ícaro encheu os olhos de lágrimas e correu, correu tanto quanto podia. Nunca tinha ouvido uma história tão horrenda quanto aquela. Corria rumo a sua casa, esperava encontrar André lá. Não sabia o que ia falar, nem como se comportar. Só queria estar com o amigo naquele momento e juraria à ele pelo seu falecido pai, pela mãe e pelo que havia de mais sagrado, que o ajudaria a encontrar o filho da puta que estragou sua família. Sentiu o sangue ferver e tentou imaginar o que faria se tivesse uma arma na mão e encontrasse esse homem. Imaginou se atiraria realmente.

            Os devaneios passaram quando subiu as escadas do prédio correndo e viu que a porta do seu Kitnet estava semi-aberta. André estava lá! Ainda bem que o encontrara, sozinho o garoto poderia fazer merda.

            Quando Ícaro entrou, qual não foi sua surpresa. Ao invés do amigo, o garoto viu o tio sentado na poltrona da sua mãe. Ele estava bastante pálido e segurava um pano contra o ombro direito. Olhou pro chão e viu bastante sangue.

            O Tio levantou a cabeça em sua direção e perguntou: _Ei muleque, cadê tua mãe?

*Nome de uma música dos Titãs.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

(des)cartaz

Juntei minha paixão por cinema e a falta do que fazer (ou não) e fiz uns cartazes de filmes. Como aqui e acolá aparece uma galera fazendo uns cartazes minimalistas sobre filmes (veja aqui, aqui e aqui), resolvi fazer as minhas versões. Para não ficar no lugar comum, resolvi colocar uma frase mais marcante de cada filme como complemento para os símbolos e retirei o título das películas.













E aí? Consegue adivinhar que filmes são esses? Comente.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Crescer é pagar contas ou fazer parte de um Clube de café da manhã?


Tirando a teia de aranha do duplipensamentos. Faz tempo desde a última postagem, vamos lá.

Depois de muita insistência do meu amigo Sidin, resolvi alugar na locadora Bit Torrent um filme que todo mundo já deve ter visto na Sessão da Tarde: O clube dos Cinco, Breakfast Club no original. Ele é um filme de 1985 e ao contrário das roupas, músicas e clichês, muita coisa nele não é datada (violência doméstica, delinqüência juvenil, drogas, bulling) e cabem ainda nos dias de hoje.



Clube dos cinco mostra um sábado de detenção na escola de cinco alunos indisciplinados . Nenhum deles são amigos, na verdade, os cinco são estereótipos de toda escola norte americana dos anos 80: um marginal e um nerd, uma esquista caladona, um atleta e uma patricinha.
O filme começa sem você saber ao certo porque eles estão ali pagando detenção (sem contar, lógico, o marginal) e qual personagem você deve simpatizar pra seguir até o fim do filme. Tentei seguir o marginal , meio punk meio grunge, anarquista e porra louca, ele parecia ser o mais legal até se mostrar um verdadeiro delinqüente. Depois tentei seguir o nerd ( que por um acaso é o narrador no começo do filme), ele é fraco, desajeitado, meio engraçado,  inteligente e por fim, muito chato. Descartei de cara o atleta e a patricinha e fui pra menina estranha muda. Muito estranha. Não deu.
Os cinco vão passando o dia de detenção juntos em uma escola vazia sob a tutela de Sr. Vernon,um diretor  bastante blasé. Eles passam o dia brincando, dormindo, fumando maconha na biblioteca, fazendo pares românticos e dançando e cantando juntos à lá Footloose.

Porra de filme de merda hein? 

Seria se não tivesse uma baita carga dramática no meio dele. Quando você está prestes a se cansar dele, os personagens dão um salto na história e começam a contar porque estão ali. E cara, é emocionante a cena de confissão de cada um deles. Os cinco começam a conversar sobre os problemas familiares, o medo de crescer e todas as angústias de adolescente. Questionam juntos a sociedade, os valores e seus comportamentos. Sem querer dar spoilers (o que é sem noção. Não se dá spoilers de um filme com mais de 25 anos) o nerd teve que pagar detenção porque foi pego com um revolver no armário, o forte atleta está ali porque foi um medroso, um covarde. A estranha caladona foi detida porque só falava mentiras, a popular patricinha porque era insegura e o marginal porque no fim das contas queria ser amado. Confuso? Tanto quanto a sua cabeça na adolescência.
De alguma maneira, em algum momento do filme você simpatiza com algum dos personagens. Pra mim a trajetória deles é uma alegoria à transição entre a infância e a vida adulta. Cada um deles errou, pagaram e foram forçados a parar pra pensar no que fizeram (dia de detenção), confessaram suas falhas diante da sociedade (conversas entre eles) e seguiram com o peso de suas culpas e escolhas e um desejo sincero de mudança (planos que fizeram  para o primeiro dia de escola depois da detenção).

É bem o que diz a carta deixa pelo nerd ao diretor:

Caro Sr. Vernon, aceitamos o fato de que nós tivemos que sacrificar um sábado inteiro na detenção por tudo o que fizemos de errado ... e o que fizemos foi errado, mas acho que você está louco para nos fazer escrever este texto dizendo-lhe o que pensamos de nós mesmos. Que diferença faz pra você? Se nos enxerga como você deseja nos enxergar. Em os termos mais simples e com as definições mais convenientes. Você nos enxerga como um cérebro, um atleta, um caso perdido, uma princesa e um criminoso. Correto? Essa é a maneira que nós víamos, às sete horas desta manhã. Passamos por uma lavagem cerebral.

E eu aqui pensando que ser adulto era só pagar contas.

A trilha sonora é da banda Simple Minds com a música tema: Don't you forget about me




domingo, 15 de maio de 2011

O vôo de Ícaro - Parte 3: Quando o sol se esconde

       Soprava uma manhã fria lá fora. Dava pra ouvir o som de carros e de pessoas conversando na rua, pois Maranguape já estava de pé havia duas horas. Coçou os olhos, se arrumou e saiu pra rua. Tomaria o café no bar do Eliézer lá no mercado público. Comeu rápido o pedaço de bolo mole com café e se levantou rumo ao supermercado Mesa Farta onde trabalhava empacotando e entregando as compras dos clientes até o meio dia. Esse trabalho garantia um pouco de dinheiro por dia, não era muito, mas ajudava a comprar algumas coisas pra casa. Sua mãe era professora e o salário mal dava pra pagar as compras do mês. Sempre faltava algo.

            Pegou umas seis sacolas e foi seguindo uma senhora. Ela morava perto da praça da Guabiraba, já havia deixado suas compras uma vez e sabia que ela era bem generosa. Dava uma gorjeta gorda e ainda oferecia um lanche pra quem lhe ajudasse. Foi andando próximo à mulher e lembrou que seu pai, o Deda, como chamavam, também havia batalhado muito antes de ser dono de uma empresa. Muito inteligente e obstinado, tinha vindo do interior pra estudar na capital. Estudava à noite e pelo dia fazia bicos. Um dia passara no vestibular da federal e fora estudar economia com os filhinhos de papai de Fortaleza. Fez muitos contatos, sabia se relacionar. O velho se vendia muito bem, era uma pessoa que chamava atenção. Foi assim que conheceu sua mãe, uma militante do movimento estudantil da UFC e que morava em Maranguape. Se casaram e o homem decidiu morar com ela na cidade serrana. Ia e vinha todo dia da capital para a cidadezinha. Trabalhou em grandes escritórios e empresas, sempre juntando um pé de meia até abrir uma concessionária de carros na cidade Alencarina. Era lá onde ele passava grande parte do seu dia durante quase 25 anos.
            Ícaro lembrou amargamente que seu pai era um aficionado por trabalho, dinheiro, carros e bebida. Nunca lhe faltou nada, moravam numa casa grande próximo à ponte da outra banda, tinha todos os brinquedos que queria, seu pai dava tudo, menos atenção. O relacionamento nunca foi dos melhores, seu pai ficava sempre calado. Mesmo quando tentava puxar conversa falando algo do colégio ou das aulas de natação, o homem continuava com a mesma cara, dura, como se estar ali com o filho lhe fosse um fardo. Como se o filho sempre incomodasse.
            Lembrou que passou pouco tempo junto e que havia conversado minimamente com o pai. Ele nunca tinha tempo. Passava o dia no escritório, chegava tarde da noite e saía cedo. Nos fins de semana saía com os amigos ou passava o dia dormindo. Ícaro sentia que não cabia na vida do pai. Sempre sentira falta de um abraço, de um sorriso, aperto de mão, de um olhar que não fosse reprovador ou de uma conversa que durasse mais que 10 minutos. Chegou até a odiá-lo por isso, via os pais de seus colegas de classe e desejou ter um outro pai, alguém que o tratasse como filho.
            Tudo mudou pra pior quando veio o Plano Collor em março daquele ano e todas as finanças do pai que estavam na poupança foram confiscadas. Ele e vários brasileiros que confiaram no caçador de marajás, ficaram pobres da noite pro dia. Dédalo pirou, não dormia mais, não comia e nem conversava. Só ficava ali na cadeira da varanda de casa, olhando vagamente para o céu, quando numa noite saiu de casa à pé e nunca mais voltou.
            Ícaro lembra nitidamente que foi acordado no meio da noite pela mãe aos prantos: "Meu filho, acorda. Teu pai, teu pai...". Seu pai havia sido encontrado morto na calçada da Drogaria Ceará, tinha se jogado do prédio do Nonato. Sua mãe falou que ele não suportava a perda de tudo o que tinha conseguido, o peso das dívidas o esmagaram.
            O velório foi a pior parte. Muita gente, familiares conversando, dando tapinhas em suas costas, culpando Collor e a ministra Zélia, contando piadas. Daria tudo para não precisar estar ali com aquelas pessoas que pareciam não se importar com sua dor e sua perca. 
            Com os olhos marejados, deixou as compras na varanda da casa da velha e saiu sem pegar gorjeta. Odiava realmente o pai, pensou em todos os momentos felizes da sua vida e lembrou que ele nunca estava lá. Em todas as fotos de campeonatos, feiras de colégio, passeios da escola, ele era a única criança acompanhada pelo tio ou pela mãe. Nunca, nunca seu pai estava presente. Aquele escroto só pensava em si e no seu dinheiro. Nunca dera a mínima pro filho, pensou.
            Chegou em casa esbaforido, subiu as escada correndo e quando abriu a porta, viu sua mãe sentada chorando e olhando pra ele. Parecia sóbria quando estendeu um envelope em sua direção e falou: "eu encontrei agora no meio das caixas de mudança. Ele deixou uma carta para você."
            Ícaro gelou. Olhou pra carta e viu escrito: Para Ícaro. Só podia ser brincadeira. Como assim? Todo mundo havia vasculhado a casa e o escritório buscando uma carta ou um diário que pudesse ter sido deixado para os familiares e não acharam nada. O que seu pai tinha para lhe dizer? Será que depois de 14 anos sem lhe dar atenção ele achou que por se matar e deixar uma carta pedindo perdão, seu filho iria perdoar o tempo perdido? Não perdoaria. Pra completar, o safado se foi deixando a mulher e o filho com uma dívida enorme para pagar. Tiveram que vender a casa e foram morar naquela espelunca. Ícaro deixou de estudar no colégio da Dona Edith e foi para a escola Estadual Manuel Rodrigues. Sua mãe entrou em profunda depressão e começou a beber compulsivamente. A vida deu um giro de 360° em menos de 1 mês.
            Pegou a carta e saiu correndo, ia queimar, rasgar, jogar fora. Não queria saber do pai, daquela vida de merda nem daquela dor que sentia no peito. Chegou na praça da antiga fonte luminosa e sentou num banco. Olhou pro papel amassado na mão e imaginou o que havia escrito ali. Queria respostas, queria saber porque o pai sempre fora aquele grande filho da puta. Se é que ele teve a consideração de explicar isso em uma carta. Duvidava. Naquele momento a curiosidade era maior que a dor. Respirou fundo e enxugou as lágrimas do rosto. Parou por um momento, olhou pra pessoas que passavam na rua e pro sol se escondendo detrás da serra. Odiava o fim de tarde, não sabia porque, mas ver o sol ir embora parecia que a esperança ia junto e nada poderia dar certo.
            Ao abrir o envelope, reconheceu a caligrafia do pai e se emocionou quando leu no cabeçalho da folha: "Ao Ícaro, meu filho querido, a quem eu amava perdidamente, mas nunca soube como lhe dizer."

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Pais e Filhos. Tias e Sobrinhos.


            Já faz um ano e meio que minha tia morreu. Nunca tinha perdido alguém tão próximo, que gostava tanto. Pra você ter idéia, meus avós ainda estão vivos. Uma vez perguntei pra uma amiga que havia perdido o pai, como era viver anos depois sem aquela pessoa. A gente se acostuma? Ela disse que não, sempre há aquele vazio, você só não deixa de viver sua vida. É tão estranho essa saudade, ela aparece do nada, quando você menos espera. Hoje lembrei da minha tia sem querer, ouvindo Pais e Filhos do Legião Urbana.
            Quando ela morreu e eu tava lá no velório, lembrei dessa música. Não sei porquê. Minha tia nunca gostou do Renato Russo e creio que ela nunca nem parou pra ouvir algo da banda. Tanto faz.
            "Dorme agora, é só o vento lá fora."  Foi a parte da música que lembrei naquela hora. Essa frase me fez chorar pra caramba naquele dia e me emociona ainda hoje. Ela me passa um conforto que talvez o poeta não havia imaginado.
            Imagina só, nós vivemos sempre muito aperriados atrás da vida profissional, preocupados com as contas, com ganhar ou perder dinheiro, com os problemas familiares, sociais, amorosos e com o nosso futuro.  Nos deixamos perturbar por mil coisas. Quando uma preocupação se vai, já vem outra pra tomar o seu lugar e assim vivemos loucamente, sem descanso, com um vazio que nunca é preenchido, uma sede insaciável e sem muitas respostas pra vida. Aí chega alguém confiável pra você e diz: "fica tranqüilo, descansa aí. Relaxa. Deixa essas preocupações e dorme". É ou não é um conforto?
            Logicamente minha tia não estava isenta dessas aflições. E talvez seja por isso que eu lembrei dessa frase e cantei baixinho no ouvido dela: "Dorme agora, é só o vento lá fora."  Eu só queria dizer pra ela que estava tudo bem, já não havia preocupação, problemas, frustração, injustiça, IPTU ou a diarista pra pagar. Que essa zuada toda era só a vida agitada que soprava como um vento frio lá fora pela janela e que ela podia dormir em paz.

domingo, 10 de abril de 2011

O vôo de Ícaro - Parte 2: Tão vazio quanto um anúncio numa revistinha de quadrinhos



 Estava uma noite quente quando desceu na praça da matriz. Foi até a padaria Lusitana tomar um refrigerante gelado. Sempre achara engraçado aquele letreiro neón vermelho e verde na fachada do estabelecimento, lembrava bares que via em filmes americanos. Pediu um guaraná pra moça do balcão, pagou e enquanto tomava, olhou pra um cartaz colado na parede. Nele havia um sorridente garoto de óculos com um Guaraná Brahma na mão. Odiava aquele menino. Não sabia o porquê, mas odiava. Terminou de beber e saiu rumo à sua casa.
Chegou no portão do velho prédio dos Colares, ao lado da Teleceará, e subiu dois vãos de escada. Da porta do quitinete ouviu que dentro de casa estava tocando o disco da Roberta Miranda. Sabia que era sua mãe ouvindo a vitrola antiga que herdara da falecida tia, uma das poucas coisas que não haviam sido vendidas para pagar as dívidas do pai. Tinha saudades do 3 em 1. Passara bons momentos em um, selecionando músicas para gravar uma fita cassete para seus amigos de escola. Entrou e a viu sentada de costas no sofá puído com uma garrafa de Dreher seca na mão olhado pela janela o céu escuro de Maranguape. Se aproximou e tentou ver o que prendia sua atenção e não viu mais do que as portas de correr das lojas do outro lado da rua e o velho telhado do INSS. Olhou de volta pra mãe e ouviu um embriagado e sonâmbulo: "vai dormir garoto."
Pegou a garrafa seca da mão da mulher e pôs no pé da porta. Sentiu um fedor e percebeu que deveria ser mais um rato morto debaixo da geladeira enferrujada. Desligou o som e foi até o armário quebrado numa cozinha improvisada e pegou um biscoito de Maizena. Esse era seu jantar. Foi-se o tempo em que jantava fartamente na casa dos amigos do pai ou no Restaurante Chico City. Tirou o surrado Kichute e deitou na cama. Pegou debaixo dela algumas revistinhas que guardava quase que religiosamente numa caixa de leite Ninho que pegara no mercantil do Edivar. Sempre gostara de ler e toda noite o fazia até ficar cansado e dormir. Colecionava HQs porque as histórias o transportavam para uma outra realidade, uma realidade menos dura. Sem contar que todo super-herói parecia um pouco com ele mesmo. Quase todos tinham pedido algum ente querido.
Pegou uma revistinha que já lera inúmeras vezes, a dos Novos Titãs que tinha na capa o Robin salvando seu amigo Ciborgue de uma explosão. Não gostava muito da idéia de o menino prodígio deixar o Batman sozinho para acudir uma liga de jovens super-heróis. Que seja! Folheou a HQ e percebeu que mais do que essa covardia, odiava os anúncios que vinham no miolo da revista. Tinha um do Instituto Universal Brasileiro com jovens sorridentes andando com livros em um campo aberto. Pareciam contentes e realizados. Balela. Ninguém se sentiria assim só por aprender a tocar violão, consertar carros, costurar ou montar e desmontar um rádio por um curso à distância,   ouvira um amigo dizer isso e dava razão. Odiava também o sorriso daquele pivete do anúncio do Guaraná Brahma e das garotas da Sukita. Aqueles sorrisos tão autênticos pareciam traduzir o quão perfeita eram suas vidas. Lembrara agora porque odiava aquele garoto, na verdade odiava toda e qualquer propaganda. Tinha inveja dessa alegria exarcebada dos modelos da Mesbla, das roupas legais, do status, das festas divertidas nos comerciais da Kolynos, dos abraços sinceros e das famílias felizes nas propagandas de manteiga. Cada anúncio lembrava aquilo que ele não podia possuir mais: uma vida feliz.
A mensagem que a grande maioria passava era de que todo jovem da sua idade deveria aproveitar a vida ao máximo e ser feliz com os amigos e família, era o que criticava seu professor de história. Não tinha certeza se isso era uma artimanha da propaganda pra vender ou um sincero conselho.  Na verdade, o que ele via cada vez mais era uma juventude perdida,  sem amigos ou rumo num país de merda. " A juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes." Era o que cantava aquele loiro dos engenheiros do Hawaii. No fim das contas, esse falatório todo da publicidade, parecia ser tão vazio quanto sua vida.
  Largou a revista, apagou a luz e deitou na cama. No escuro, a única luz que tinha eram as dos postes da rua e de faróis de um ou outro carro que se aventuravam pela madrugada. Adorava ver as luzes que vinham pela janela, dançando pelas paredes do quarto enquanto o carro passava. Gostava de ouvir barulhos de carros, motos e pessoas conversando na rua à noite. Não se incomodava, na verdade se confortava em saber que tinham pessoas acordadas, fazendo suas coisas, indo pro trabalho ou voltando dele. Gostava de saber que tinha vida lá fora, em oposição ao silêncio fúnebre de sua casa, de sua vida e de seu coração.