PAR LER OUVINDO:
Ícaro olhou pros seus pés. Estava descalço na chuva. Não sabia como, mas estava confortável naquele paletó molhado. Sentiu um vento forte bater em seu rosto, olhou para o lado e viu seu tio deitado em sangue agonizando sem os dois olhos. Pareciam terem sido arrancados com bastante brutalidade, pois haviam somente dois buracos e carne rasgada em seu rosto. Não se importou e foi andando até a borda do prédio. Percebera que estava no terraço do prédio do Nonato. O mais alto da cidade. Dali podia ver a matriz de nossa senhora da penha, a serra e a torre do prédio da cadeia municipal com um relógio que não já funcionava e nem sequer lembrava se algum dia o vira funcionando.
O garoto olhou e ignorou sua mãe que se equilibrava em um fio de poste com uma garrafa de Dreher na mão. Ela ria loucamente e chorava ao mesmo tempo. Ia andando no fio e por vezes quando o vento soprava, parecia que ia cair. Então parava, se equilibrava e voltava a andar.
Continuou caminhando até perceber que havia uma corda em seu pescoço. Esta terminava exatamente na borda do prédio. Parecia que a outra ponta estava amarrada a alguma coisa. Com curiosidade foi se aproximando do parapeito quando de repente a corda começou a apertar seu pescoço e a puxá-lo. Tentou se segurar, mas não conseguiu, o que quer que estivesse na outra ponta, era bastante pesado e o levava para a morte. Quase caiu quando chegou violentamente à borda. Segurou fortemente e olhou pra baixo, com a intenção de ver o que lhe puxava. E viu, viu que era o corpo estático e penso no ar de seu falecido pai que o puxava para baixo. Tentou soltar a corda do pescoço em vão quando mais uma vez sentiu um puxão. Lutou com todas as suas forças naquele cabo de guerra demoníaco até sentir suas forças cessarem e ceder ao adversário. Então foi arrancado da borda e caiu.
Parecia que estava caindo em câmera lenta, sentiu o vento no rosto, bailou no ar e olhou pro céu. Não queria morrer, tinha somente 14 anos e gostava da vida, dos amigos, das garotas que conheceu e até do seu trabalho. Amava viver. Porque morrer agora? Desse jeito? Não merecia viver? Percebeu que seu fim estava próximo quando olhou pra baixo e viu que o corpo de seu pai tocou o chão primeiro. Este caiu com um baque surdo na calçada da farmácia com os braços abertos como que dizendo: “vem filho, vem pros meus braços. Você não vai mais precisar se preocupar com nada, não vai mais sentir dor.”
Era isso. Por que se preocupar? Sempre quisera aquele aconchego e carinho do pai, sentira falta daquilo em toda a sua vida. O chão se aproximava cada vez mais, o vento zumbia em seu ouvido. Fechou os olhos e não sabia como, mas antes de cair na calçada, ouviu nitidamente, como se estivesse dentro da sua cabeça, o refrão daquela música do Bob Dylan: "The answer, my friend, is blowin' in the wind. The answer is blowin' in the wind"
Ícaro abriu os olhos num pulo. Acordou suado e olhou pela janela do ônibus. Estava na outra banda, aquele quebra-molas era alto demais e sempre acordava os passageiros dorminhocos. Era o aviso de que estavam chegando em Maranguape. O garoto desligou o walkman amarelo e o guardou na mochila. Se levantou, pagou a passagem e desceu na praça da matriz. No caminho de casa foi pensando no sonho que tivera. Não lembrava muito mas sabia que sonhara com o pai. Começara a ter sonhos com ele fazia quatro meses, desde a sua morte. Acreditava que os culpados de seu suicídio e de todos os infortúnios de sua vida, eram aquele Alagoano escroto e aquela vaca descabelada, a quem o Brasil erroneamente colocou no poder como presidente e ministra da fazenda.
Como podia um país inteiro cair naquela armadilha chamada Plano Brasil Novo? Como seu pai, um homem que admirava por sua inteligência e perspicácia não desconfiara daquilo e até fizera campanha pró-caçador de marajás? Porque sua relação com o pai era tão difícil? Porque nunca dera atenção ao filho ou dissera que o amava? Não sabia. O vento soprava mas dessa vez, infelizmente, ele não trazia resposta alguma.
*Primeira parte do conto O vôo de Ícaro.