domingo, 19 de agosto de 2012

Súplica

   Anoiteceu mais uma vez. Dona Francisca estava ali na porta de casa debulhando o feijão de cabeça baixa quando percebeu a escuridão. Lá se ia mais um dia, todos pareciam os mesmos, sem gosto ou novidade, morrendo a cada pôr do sol. Se levantou, bateu a saia cheia de palha e guardou a bacia. Em seu passo lento fechou todas as portas e janelas da casa, foi até o quarto e pegou um balde com água que estava no pé da cômoda. Molhou um pano e começou a esfregar o corpo de Antônio, seu filho de 32 anos que estava deitado na cama. Seu primogênito nunca falara ou andara. Água na cabeça, era o que os médicos tinham dito. Castigo, era o que calava no coração da velha.

   Enxugou o inválido e o deitou. Preparou a janta e a deu na boca com todo o carinho. Penteou o cabelo e colocou uma roupa limpa, bonita. Parecida com aquelas que se vai pra missa no domingo. A mesma ação que se repetia durante três décadas.

  Antônio até sorriu. Parecia gostar da vestimenta e da sensação de estar limpo. A mãe ligou o velho rádio de pilhas, Café Filho renunciou a presidência para cuidar do seu problema cardíaco, disse o locutor antes de começar uma música do Vicente Celestino. Aproveitou que estava em pé e abriu a janela do quarto antes de deitar ao lado do filho. Passou a mão em sua cabeça, deu um beijo e ficou olhando com ele o céu iluminado de estrelas. De longe podiam ver clarões e estrelas pipocando no ar. Era festa da padroeira, todos tinham ido pra igreja naquela noite.

    Francisca se demorou mais um pouco ali sentada ao lado do filho, olhou pra ele e o abraçou. Pegou um travesseiro grande da cama de casal onde dormiam os dois e o apertou contra o rosto do filho. Antônio se debateu, grunhiu o que sua garganta deixava, bateu as pernas e os braços. Segurou fragilmente os braços da velha  tentando se sair, sem sucesso, a arranhou como pôde. Depois de alguns minutos, os membros desfaleceram e o silêncio voltou à casa.

   Francisca retirou levemente o travesseiro e viu um rosto de dor. Fechou os olhos do filho com os dedos, se levantou e foi tomar banho fora da casa.

   Vestiu o vestido mais bonito que tinha, jantou na mesa da cozinha e quando terminou, fechou todas as janelas e apagou todas as lamparinas acesas. Voltou para o quarto e deitou na cama. Abraçou o corpo do filho e ficou olhando as estelas através da janela aberta. Recordou cada momento em que pensou em fazer aquilo. As incertezas e as dúvidas de um velho coração machucado.

  Lembrou do primo com quem tivera Antônio, seu único filho, e do amor perdido que tinha por ele. Recordou do rosto de cada pessoa que passara por sua vida, dos que a ajudaram e os que viraram o rosto. Lembrou dos pais e da sua infância subindo em pés de siriguela, correndo e andando de cavalo. Dos amores de moça pelo cunhado e por fim, o caso com o primo. Recordou os dias em que esteve prenha e a maldição do pai. Do dia que saiu de casa e de quando percebeu que seu amor a deixava só. Pensou no parto difícil que teve e na deformação do recém nascido como castigo por fornicar com um parente. Na Dona Maria, ex-freira, que lhe deu abrigo e cuidou dela e do filho até o fim da sua vida, há cerca de 12 anos atrás. Reviveu cada dia de solidão naquela casa vazia, sem ninguém para conversar.

  E então Francisca parou de recordar. Afagou o filho e se perguntou quanto tempo ainda demoraria até a mistura fazer efeito. Dava certo com ratos e poderia, suplicava à Deus, lhe dar o mesmo fim.

Pela janela aberta a fria madrugada amortalhou-me a dor num manto da garoa.
Esperança, morreste muito cedo.
Saudade! Cedo demais chegaste...

 Cantava Orlando Silva no rádio quando Francisca foi abraçada pela escuridão.