Anoiteceu mais uma vez. Dona Francisca estava ali na porta de casa debulhando o feijão de cabeça baixa quando percebeu a escuridão. Lá se ia mais um dia, todos pareciam os mesmos, sem gosto ou novidade, morrendo a cada pôr do sol. Se levantou, bateu a saia cheia de palha e guardou a bacia. Em seu passo lento fechou todas as portas e janelas da casa, foi até o quarto e pegou um balde com água que estava no pé da cômoda. Molhou um pano e começou a esfregar o corpo de Antônio, seu filho de 32 anos que estava deitado na cama. Seu primogênito nunca falara ou andara. Água na cabeça, era o que os médicos tinham dito. Castigo, era o que calava no coração da velha.
Enxugou o inválido e o deitou. Preparou a janta e a deu na boca com todo o carinho. Penteou o cabelo e colocou uma roupa limpa, bonita. Parecida com aquelas que se vai pra missa no domingo. A mesma ação que se repetia durante três décadas.
Enxugou o inválido e o deitou. Preparou a janta e a deu na boca com todo o carinho. Penteou o cabelo e colocou uma roupa limpa, bonita. Parecida com aquelas que se vai pra missa no domingo. A mesma ação que se repetia durante três décadas.
Antônio até sorriu. Parecia gostar da vestimenta e da sensação de estar limpo. A mãe ligou o velho rádio de pilhas, Café Filho renunciou a presidência para cuidar do seu problema cardíaco, disse o locutor antes de começar uma música do Vicente Celestino. Aproveitou que estava em pé e abriu a janela do quarto antes de deitar ao lado do filho. Passou a mão em sua cabeça, deu um beijo e ficou olhando com ele o céu iluminado de estrelas. De longe podiam ver clarões e estrelas pipocando no ar. Era festa da padroeira, todos tinham ido pra igreja naquela noite.
Francisca se demorou mais um pouco ali sentada ao lado do filho, olhou pra ele e o abraçou. Pegou um travesseiro grande da cama de casal onde dormiam os dois e o apertou contra o rosto do filho. Antônio se debateu, grunhiu o que sua garganta deixava, bateu as pernas e os braços. Segurou fragilmente os braços da velha tentando se sair, sem sucesso, a arranhou como pôde. Depois de alguns minutos, os membros desfaleceram e o silêncio voltou à casa.
Francisca retirou levemente o travesseiro e viu um rosto de dor. Fechou os olhos do filho com os dedos, se levantou e foi tomar banho fora da casa.
Vestiu o vestido mais bonito que tinha, jantou na mesa da cozinha e quando terminou, fechou todas as janelas e apagou todas as lamparinas acesas. Voltou para o quarto e deitou na cama. Abraçou o corpo do filho e ficou olhando as estelas através da janela aberta. Recordou cada momento em que pensou em fazer aquilo. As incertezas e as dúvidas de um velho coração machucado.
Lembrou do primo com quem tivera Antônio, seu único filho, e do amor perdido que tinha por ele. Recordou do rosto de cada pessoa que passara por sua vida, dos que a ajudaram e os que viraram o rosto. Lembrou dos pais e da sua infância subindo em pés de siriguela, correndo e andando de cavalo. Dos amores de moça pelo cunhado e por fim, o caso com o primo. Recordou os dias em que esteve prenha e a maldição do pai. Do dia que saiu de casa e de quando percebeu que seu amor a deixava só. Pensou no parto difícil que teve e na deformação do recém nascido como castigo por fornicar com um parente. Na Dona Maria, ex-freira, que lhe deu abrigo e cuidou dela e do filho até o fim da sua vida, há cerca de 12 anos atrás. Reviveu cada dia de solidão naquela casa vazia, sem ninguém para conversar.
E então Francisca parou de recordar. Afagou o filho e se perguntou quanto tempo ainda demoraria até a mistura fazer efeito. Dava certo com ratos e poderia, suplicava à Deus, lhe dar o mesmo fim.
Pela janela aberta a fria madrugada amortalhou-me a dor num manto da garoa.
Esperança, morreste muito cedo.
Saudade! Cedo demais chegaste...
Cantava Orlando Silva no rádio quando Francisca foi abraçada pela escuridão.
muito boas as descrições, me lembrou esse texto meu http://navioteleri.blogspot.com.br/2011/12/o-sono.html vei que nem presta. As relações de causa e efeito dão uma humanidade interessante ao pensamento da personagem. Gostei.
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