quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O vôo de Ícaro - Parte 4: 32 dentes*

            Marejou os olhos quando leu a primeira frase. Seu pai nunca lhe falara aquilo, nunca conversara muito com ele. Todas as conversas que tivera na infância, aquelas em que você aprende coisas simples da vida com um adulto, sempre as tivera com seu tio. Fora ele quem ensinara a andar de bicicleta, empinar raia, soltar pião e jogar bila e que de alguma forma fez sua infância feliz. Tinha grande apreço mesmo não o vendo à muito tempo. Devia-lhe grande parte de sua formação e caráter. E agora seu pai vinha com essa de que o amava?

            Não teve nem tempo de respirar ou esboçar qualquer reação quando a carta foi arrancada da sua mão e ouviu aquela voz irritantemente familiar:

              _Ei otário, tá de bobeira lendo cartinha de amor?

            Era Bernardo, um garoto encrenqueiro da escola São José. Mesmo já não estudando lá, Ícaro ainda era alvo de brincadeiras do garoto quando o via pela cidade. O cara mexia com todo mundo e arranjava confusão em todo canto que ia. Ouviu dizer que ele era assim, "revoltado" porque a mãe tinha enloquecido e fora mandada praquele hospício em Fortaleza.

              _Dá aqui! Não é da tua conta!

            Pegou a carta da mão do encrenqueiro e a guardou rápido no bolso. Deu meia volta e já ia saindo quando este lhe falou:

             _Não vai consolar tua namoradinha? Ele tá lá chorando feito menininha. Parece que a vadia da mãe dele foi pega com um namorado e o corno do marido resolveu ajustar as contas.

            Bernardo falava de André, seu melhor amigo. Como assim sua mãe estava com outro homem? Ela parecia tão feliz com o Sr. Átila Morais, até grávida estava. Podia ser mentira do briguento. Não deu importância, queria sair mesmo dali, saiu correndo rumo à casa do amigo que ficava perto daquela igreja nova, ali na Praça do Rosário.

            Já era noite quando chegou lá esbaforido. Ícaro viu que era verdade, havia muita gente na rua. Carros de policiais, ambulância e um carro do IML em frente à casa dos Morais. Olhou entre a multidão pra ver se encontrava seu amigo, mas foi em vão. Quando ia perguntar a um senhor o que havia acontecido, viu uns homens de branco segurando um saco preto com um corpo dentro saindo da casa em direção ao fundo do carro do IML. Pouco tempo depois vieram mais quatro homens com mais um cadáver. Fecharam as portas do carro e deram partida rumo à Fortaleza.
          Avistou o carro de reportagem daquele programa policial que passava na hora do almoço, o Aqui e Agora. Ignorou a balbúrdia que os garotos e os adultos faziam ao redor do câmera. Tanta gente! Parecia que a cidade tava toda ali. Se aproximou do portão da casa do amigo e chamou Hélia, a doméstica que sempre trabalhara na casa dos Morais. A mulher estava em choque, parecia mais velha e acabada que nos outros dias. Quando o viu, correu ao seu encontro e disse:

             _Menino, vai atrás do André. Ele chegou em casa e viu tudo. Pensei que ele tivesse contigo, vocês só andam junto. Procura por ele, que todo mundo tá preocupado. Saiu correndo feito doido e ninguém sabe donde que ele tá. Gritou que ia matar o homem que fez isso e falou um monte de baboseira. O menino endoidou! Vai atrás dele antes que faça besteira.

            Será que André fora pra sua casa lhe procurar? Era possível, ele precisaria de sua ajuda para encontrar o homem que deitara com sua mãe. 

           Fazia algum tempo desde que Ícaro recebera a carta do pai e fora pra praça. André, agora mais do que nunca precisaria da sua ajuda. Já nem se lembra mais quando o conheceu, só lembra de sentarem perto um do outro e começarem a falar de quadrinhos e outras coisas. Percebeu que tinham muita coisa em comum e começaram a andar juntos. Mesmo depois da crise e de mudar de colégio, André nunca deixou de falar ou sair com o amigo. Ao contrário de outros colegas de escola, ele sempre fora o mesmo e nunca se importara com sua condição financeira.

            Ele também esteve presente no velório de seu pai. Foi até um conforto, um alívio vê-lo em meio à tantos rostos desconhecidos naquele dia. Agora era a vez de Ícaro fazer sua parte pelo amigo. O ajudaria a encontrar aquele infeliz e se pudesse machucá-lo, o faria. Antes de chegar ao fim da rua, parou próximo ao depósito do Cordeiro e ouviu a conversa de dois homens, falavam algo sobre o ocorrido na casa dos Morais:

          _Brutal rapaz, muito louco. O cara devia tá muito fulo da vida. Um homem tão quieto e direito né não? Chegou em casa mais cedo, pediu pra sair antes do horário no trabalho porque era aniversário da mulher. Chega em casa, vê ela atracada com outro na cama.

            _E quem era o negão? Perguntou o segundo.

         _ Só Deus sabe. O que a polícia diz é que o Morais pegou um facão e que possivelmente lascou no braço do home. Porque tem um rastro de sangue da cama, passando pela janela e indo portão afora. O cara fugiu sangrando. Ele tá sendo procurado.

          _Já a mulher não teve a mesma sorte. A empregada disse que quando entrou no quarto, viu a patroa aberta. O marido endoidou e abriu a vagina dela com o facão e retirou o feto.

          _Deus me livre! O que é isso? Valei-me São Sebastião!

         _E não termina aí. Encontraram o feto pendurado nos espetos do pega-ladrão no muro da casa. O Morais tava no escritório com os miolos no teto. Atirou com uma velha 48 que tinha. Deixou um bilhete dizendo que matara a mulher e a criança que ela tinha na barriga. Escreveu que sabia que o filho não era dele.

            Ícaro encheu os olhos de lágrimas e correu, correu tanto quanto podia. Nunca tinha ouvido uma história tão horrenda quanto aquela. Corria rumo a sua casa, esperava encontrar André lá. Não sabia o que ia falar, nem como se comportar. Só queria estar com o amigo naquele momento e juraria à ele pelo seu falecido pai, pela mãe e pelo que havia de mais sagrado, que o ajudaria a encontrar o filho da puta que estragou sua família. Sentiu o sangue ferver e tentou imaginar o que faria se tivesse uma arma na mão e encontrasse esse homem. Imaginou se atiraria realmente.

            Os devaneios passaram quando subiu as escadas do prédio correndo e viu que a porta do seu Kitnet estava semi-aberta. André estava lá! Ainda bem que o encontrara, sozinho o garoto poderia fazer merda.

            Quando Ícaro entrou, qual não foi sua surpresa. Ao invés do amigo, o garoto viu o tio sentado na poltrona da sua mãe. Ele estava bastante pálido e segurava um pano contra o ombro direito. Olhou pro chão e viu bastante sangue.

            O Tio levantou a cabeça em sua direção e perguntou: _Ei muleque, cadê tua mãe?

*Nome de uma música dos Titãs.

3 comentários:

  1. Um tapa na cara, ainda sem palavras...
    "Não confio em ninguém com 32 dentes!" Titãs

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  2. Caralho, vamo ver no que vai dar. Tenho pequenas chatas observações de revisora, mas farei por email ou pessoalmente. No mais, continua a história aí!

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  3. Eu sou mestre em cometer erros de escrita, então me sinto na liberdade de dizer que merecia uma revisada em alguns pontos, inclusive no nome do colégio - na época, acredito que início dos anos 90 -, o CSJ ainda era Escola de 1o e 2o graus São José.

    Gostei da referência a "Valei-me São Sebastião" que misturado ao resto me deu uma sensação de ter influenciado nessa virada policial para a trama - mesmo que não tenha sido, eu quero me sentir assim e pronto. heheheh.

    Mais uma vez, gosto muito dos seus textos, sempre espero coisas boas. Parabéns!

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