domingo, 10 de abril de 2011

O vôo de Ícaro - Parte 2: Tão vazio quanto um anúncio numa revistinha de quadrinhos



 Estava uma noite quente quando desceu na praça da matriz. Foi até a padaria Lusitana tomar um refrigerante gelado. Sempre achara engraçado aquele letreiro neón vermelho e verde na fachada do estabelecimento, lembrava bares que via em filmes americanos. Pediu um guaraná pra moça do balcão, pagou e enquanto tomava, olhou pra um cartaz colado na parede. Nele havia um sorridente garoto de óculos com um Guaraná Brahma na mão. Odiava aquele menino. Não sabia o porquê, mas odiava. Terminou de beber e saiu rumo à sua casa.
Chegou no portão do velho prédio dos Colares, ao lado da Teleceará, e subiu dois vãos de escada. Da porta do quitinete ouviu que dentro de casa estava tocando o disco da Roberta Miranda. Sabia que era sua mãe ouvindo a vitrola antiga que herdara da falecida tia, uma das poucas coisas que não haviam sido vendidas para pagar as dívidas do pai. Tinha saudades do 3 em 1. Passara bons momentos em um, selecionando músicas para gravar uma fita cassete para seus amigos de escola. Entrou e a viu sentada de costas no sofá puído com uma garrafa de Dreher seca na mão olhado pela janela o céu escuro de Maranguape. Se aproximou e tentou ver o que prendia sua atenção e não viu mais do que as portas de correr das lojas do outro lado da rua e o velho telhado do INSS. Olhou de volta pra mãe e ouviu um embriagado e sonâmbulo: "vai dormir garoto."
Pegou a garrafa seca da mão da mulher e pôs no pé da porta. Sentiu um fedor e percebeu que deveria ser mais um rato morto debaixo da geladeira enferrujada. Desligou o som e foi até o armário quebrado numa cozinha improvisada e pegou um biscoito de Maizena. Esse era seu jantar. Foi-se o tempo em que jantava fartamente na casa dos amigos do pai ou no Restaurante Chico City. Tirou o surrado Kichute e deitou na cama. Pegou debaixo dela algumas revistinhas que guardava quase que religiosamente numa caixa de leite Ninho que pegara no mercantil do Edivar. Sempre gostara de ler e toda noite o fazia até ficar cansado e dormir. Colecionava HQs porque as histórias o transportavam para uma outra realidade, uma realidade menos dura. Sem contar que todo super-herói parecia um pouco com ele mesmo. Quase todos tinham pedido algum ente querido.
Pegou uma revistinha que já lera inúmeras vezes, a dos Novos Titãs que tinha na capa o Robin salvando seu amigo Ciborgue de uma explosão. Não gostava muito da idéia de o menino prodígio deixar o Batman sozinho para acudir uma liga de jovens super-heróis. Que seja! Folheou a HQ e percebeu que mais do que essa covardia, odiava os anúncios que vinham no miolo da revista. Tinha um do Instituto Universal Brasileiro com jovens sorridentes andando com livros em um campo aberto. Pareciam contentes e realizados. Balela. Ninguém se sentiria assim só por aprender a tocar violão, consertar carros, costurar ou montar e desmontar um rádio por um curso à distância,   ouvira um amigo dizer isso e dava razão. Odiava também o sorriso daquele pivete do anúncio do Guaraná Brahma e das garotas da Sukita. Aqueles sorrisos tão autênticos pareciam traduzir o quão perfeita eram suas vidas. Lembrara agora porque odiava aquele garoto, na verdade odiava toda e qualquer propaganda. Tinha inveja dessa alegria exarcebada dos modelos da Mesbla, das roupas legais, do status, das festas divertidas nos comerciais da Kolynos, dos abraços sinceros e das famílias felizes nas propagandas de manteiga. Cada anúncio lembrava aquilo que ele não podia possuir mais: uma vida feliz.
A mensagem que a grande maioria passava era de que todo jovem da sua idade deveria aproveitar a vida ao máximo e ser feliz com os amigos e família, era o que criticava seu professor de história. Não tinha certeza se isso era uma artimanha da propaganda pra vender ou um sincero conselho.  Na verdade, o que ele via cada vez mais era uma juventude perdida,  sem amigos ou rumo num país de merda. " A juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes." Era o que cantava aquele loiro dos engenheiros do Hawaii. No fim das contas, esse falatório todo da publicidade, parecia ser tão vazio quanto sua vida.
  Largou a revista, apagou a luz e deitou na cama. No escuro, a única luz que tinha eram as dos postes da rua e de faróis de um ou outro carro que se aventuravam pela madrugada. Adorava ver as luzes que vinham pela janela, dançando pelas paredes do quarto enquanto o carro passava. Gostava de ouvir barulhos de carros, motos e pessoas conversando na rua à noite. Não se incomodava, na verdade se confortava em saber que tinham pessoas acordadas, fazendo suas coisas, indo pro trabalho ou voltando dele. Gostava de saber que tinha vida lá fora, em oposição ao silêncio fúnebre de sua casa, de sua vida e de seu coração.

Um comentário:

  1. por partes:
    1."porque você é jovem!"
    2.Logo se vê que o autor do post é publicitário,a coitada da revistinha mal apareceu.
    3.Texto muito bom, com sensações interessantes e um contexto muito rico. Parabéns futuro redator.

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