domingo, 15 de maio de 2011

O vôo de Ícaro - Parte 3: Quando o sol se esconde

       Soprava uma manhã fria lá fora. Dava pra ouvir o som de carros e de pessoas conversando na rua, pois Maranguape já estava de pé havia duas horas. Coçou os olhos, se arrumou e saiu pra rua. Tomaria o café no bar do Eliézer lá no mercado público. Comeu rápido o pedaço de bolo mole com café e se levantou rumo ao supermercado Mesa Farta onde trabalhava empacotando e entregando as compras dos clientes até o meio dia. Esse trabalho garantia um pouco de dinheiro por dia, não era muito, mas ajudava a comprar algumas coisas pra casa. Sua mãe era professora e o salário mal dava pra pagar as compras do mês. Sempre faltava algo.

            Pegou umas seis sacolas e foi seguindo uma senhora. Ela morava perto da praça da Guabiraba, já havia deixado suas compras uma vez e sabia que ela era bem generosa. Dava uma gorjeta gorda e ainda oferecia um lanche pra quem lhe ajudasse. Foi andando próximo à mulher e lembrou que seu pai, o Deda, como chamavam, também havia batalhado muito antes de ser dono de uma empresa. Muito inteligente e obstinado, tinha vindo do interior pra estudar na capital. Estudava à noite e pelo dia fazia bicos. Um dia passara no vestibular da federal e fora estudar economia com os filhinhos de papai de Fortaleza. Fez muitos contatos, sabia se relacionar. O velho se vendia muito bem, era uma pessoa que chamava atenção. Foi assim que conheceu sua mãe, uma militante do movimento estudantil da UFC e que morava em Maranguape. Se casaram e o homem decidiu morar com ela na cidade serrana. Ia e vinha todo dia da capital para a cidadezinha. Trabalhou em grandes escritórios e empresas, sempre juntando um pé de meia até abrir uma concessionária de carros na cidade Alencarina. Era lá onde ele passava grande parte do seu dia durante quase 25 anos.
            Ícaro lembrou amargamente que seu pai era um aficionado por trabalho, dinheiro, carros e bebida. Nunca lhe faltou nada, moravam numa casa grande próximo à ponte da outra banda, tinha todos os brinquedos que queria, seu pai dava tudo, menos atenção. O relacionamento nunca foi dos melhores, seu pai ficava sempre calado. Mesmo quando tentava puxar conversa falando algo do colégio ou das aulas de natação, o homem continuava com a mesma cara, dura, como se estar ali com o filho lhe fosse um fardo. Como se o filho sempre incomodasse.
            Lembrou que passou pouco tempo junto e que havia conversado minimamente com o pai. Ele nunca tinha tempo. Passava o dia no escritório, chegava tarde da noite e saía cedo. Nos fins de semana saía com os amigos ou passava o dia dormindo. Ícaro sentia que não cabia na vida do pai. Sempre sentira falta de um abraço, de um sorriso, aperto de mão, de um olhar que não fosse reprovador ou de uma conversa que durasse mais que 10 minutos. Chegou até a odiá-lo por isso, via os pais de seus colegas de classe e desejou ter um outro pai, alguém que o tratasse como filho.
            Tudo mudou pra pior quando veio o Plano Collor em março daquele ano e todas as finanças do pai que estavam na poupança foram confiscadas. Ele e vários brasileiros que confiaram no caçador de marajás, ficaram pobres da noite pro dia. Dédalo pirou, não dormia mais, não comia e nem conversava. Só ficava ali na cadeira da varanda de casa, olhando vagamente para o céu, quando numa noite saiu de casa à pé e nunca mais voltou.
            Ícaro lembra nitidamente que foi acordado no meio da noite pela mãe aos prantos: "Meu filho, acorda. Teu pai, teu pai...". Seu pai havia sido encontrado morto na calçada da Drogaria Ceará, tinha se jogado do prédio do Nonato. Sua mãe falou que ele não suportava a perda de tudo o que tinha conseguido, o peso das dívidas o esmagaram.
            O velório foi a pior parte. Muita gente, familiares conversando, dando tapinhas em suas costas, culpando Collor e a ministra Zélia, contando piadas. Daria tudo para não precisar estar ali com aquelas pessoas que pareciam não se importar com sua dor e sua perca. 
            Com os olhos marejados, deixou as compras na varanda da casa da velha e saiu sem pegar gorjeta. Odiava realmente o pai, pensou em todos os momentos felizes da sua vida e lembrou que ele nunca estava lá. Em todas as fotos de campeonatos, feiras de colégio, passeios da escola, ele era a única criança acompanhada pelo tio ou pela mãe. Nunca, nunca seu pai estava presente. Aquele escroto só pensava em si e no seu dinheiro. Nunca dera a mínima pro filho, pensou.
            Chegou em casa esbaforido, subiu as escada correndo e quando abriu a porta, viu sua mãe sentada chorando e olhando pra ele. Parecia sóbria quando estendeu um envelope em sua direção e falou: "eu encontrei agora no meio das caixas de mudança. Ele deixou uma carta para você."
            Ícaro gelou. Olhou pra carta e viu escrito: Para Ícaro. Só podia ser brincadeira. Como assim? Todo mundo havia vasculhado a casa e o escritório buscando uma carta ou um diário que pudesse ter sido deixado para os familiares e não acharam nada. O que seu pai tinha para lhe dizer? Será que depois de 14 anos sem lhe dar atenção ele achou que por se matar e deixar uma carta pedindo perdão, seu filho iria perdoar o tempo perdido? Não perdoaria. Pra completar, o safado se foi deixando a mulher e o filho com uma dívida enorme para pagar. Tiveram que vender a casa e foram morar naquela espelunca. Ícaro deixou de estudar no colégio da Dona Edith e foi para a escola Estadual Manuel Rodrigues. Sua mãe entrou em profunda depressão e começou a beber compulsivamente. A vida deu um giro de 360° em menos de 1 mês.
            Pegou a carta e saiu correndo, ia queimar, rasgar, jogar fora. Não queria saber do pai, daquela vida de merda nem daquela dor que sentia no peito. Chegou na praça da antiga fonte luminosa e sentou num banco. Olhou pro papel amassado na mão e imaginou o que havia escrito ali. Queria respostas, queria saber porque o pai sempre fora aquele grande filho da puta. Se é que ele teve a consideração de explicar isso em uma carta. Duvidava. Naquele momento a curiosidade era maior que a dor. Respirou fundo e enxugou as lágrimas do rosto. Parou por um momento, olhou pra pessoas que passavam na rua e pro sol se escondendo detrás da serra. Odiava o fim de tarde, não sabia porque, mas ver o sol ir embora parecia que a esperança ia junto e nada poderia dar certo.
            Ao abrir o envelope, reconheceu a caligrafia do pai e se emocionou quando leu no cabeçalho da folha: "Ao Ícaro, meu filho querido, a quem eu amava perdidamente, mas nunca soube como lhe dizer."

2 comentários:

  1. quando comecei a ler pensei que o texto era meu. hehehe.
    gostei do texto, sua habilidade de descrição é muito boa.
    o caminhar do personagem nos da uma ideia de pertença, ele parece proximo, por nos ser proximo, saca??!!!
    talvez eu evitasse a parte do plano collor, acho que ja ficou claro nos outros posts. Mas ver a trajetoria do pai foi bem legal.

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  2. Tinha achado que o nome Dédalo teria sido um pouco forçado, mas após nossa conversa, mudei de ideia. O caminho do autoconhecimento é árduo e longo, e continua na vida adulta como um todo. Como Niestzsche já disse uma vez: "Quando você olha pra dentro do abismo, o abismo olha pra dentro de você." O abismo aqui seria o labirinto no qual Ícaro se encontra, um labirinto psicológico, onde a todo instante ele se perde e se encontra, numa constante!

    Esse post foi o mais emocionante, pelo menos pra mim, continue escrevendo, "coração"

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